domingo, 28 de fevereiro de 2010

João Gobern

Pelo sonho é que vamos? Seja. Permita-se então que se abra esta conversa, longe de estar acabada, com uma convicção que, infelizmente, nunca poderá transformar-se em objecto de prova - se Carlos Paião fosse vivo e tivesse mantido a qualidade de produção, tanto para uso próprio como para partilha com os seus próximos, do seu curto percurso como profissional, a musica portuguesa não teria sido obrigada a tolerar as aberrações e disparates com que se viu forçada a conviver nos últimos anos.

Caso dos "pimba", os de recorte meloso (ser romântico é outra coisa, certo?) ou os de perfil brejeiro, para não lhe chamar ordinário como se calhar mereceriam. Mas também das "bands", de "boys" ou de "girls", recrutadas pela fotografia de corpo inteiro e não pelo microfone ou por quaisquer outros talentos que se percebam em disco ou em palco. De resto, havia algo de ironicamente premonitório na canção que mostrou Paião ao grande público: "Podes não saber cantar / Nem sequer assobiar / Concerteza que não vais desafinar / em play-back". Quantos reconhecemos capazes de caberem neste pré-aviso, muito mais hoje do que há duas décadas, quando "Playback" ganhou o Festival da RTP?

Mas como poderia um só homem ter travado os "ventos adversos"? Como seria possível a Carlos Manuel de Marques Paião, nascido a 1 de Novembro de 1957, em Coimbra, combater tendências e estrelinhas de pés de barro, que só serviram para baixar o nível médio daquilo que a produção nacional globalmente nos oferece? A resposta é surpreendentemente linear: à data da sua morte, Paião era o mais sólido dos valores da música ligeira portuguesa, sendo também um dos seus mais jovens praticantes. Tinha percebido que a popularidade nada tinha de incompatível com a qualidade, com a aventura, com a mordacidade, com a inteligência. Daí que, apesar das centenas de canções que mantinha "na gaveta" e que mostrava aos mais íntimos, sentado diante do inseparável orgão em que compunha e esboçava os primeiros arranjos, nunca perdesse de vista um filtro apertado, uma bitola de exigência que a si mesmo impunha e que nunca baixou, mesmo nos anos em que o deslumbramento o empurrava para se deixar cair em tentação. Hoje, sabendo do seu desaparecimento prematuro, até podemos lamentar que tenha deixado menos de uma dúzia de singles e dois álbuns, "Algarismos" e "Intervalo", o último dos quais já com edição póstuma. Mas Carlos Paião, que nem teve tempo de ensaiar aquilo a que agora chamaríamos com pompa e circunstancia "a gestão de carreira", era um rigoroso e implacável administrador do seu talento, preferindo passos seguros a saltos mal calculados.

Ele era assim, directo e transparente, na música, como na vida. Começou a escrever canções aos sete anos, revelou-se num festival de província (em Ílhavo, para ser preciso) quando já estava a caminho de se tornar medico, profissão que as cantigas nunca o deixaram exercer. Confessava, aliás, que preferia ser "um bom músico a um mau médico". Chegou à sua editora de sempre com a humildade que nunca despiu e, ao menos uma vez, teve a sorte do seu lado: a cassete com as suas criações foi parar às mãos de Mário Martins, um teimoso descobridor de vocações que nunca se impressionou com os cepticismos iniciais dos "juízes" e com os preconceitos habituais face ao género. Concorreu ao Festival da Canção em 1980 com "Amigos Eu Voltei" que, não lhe valendo a glória, começou a contribuir com a frescura e a segurança do tema, se lhe fixasse o nome. Os capítulos seguintes romperam, de vez, com o anonimato. Primeiro quando as suas canções foram ouvidas e "aprovadas" por Amália Rodrigues que, caso raro, gravou mesmo "O Senhor Extra-Terrestre". Depois, logo em 1981, quando venceu de forma clara, ultrapassando favoritismos pré-fabricados, o Festival RTP: com o bem disposto "Playback".

Tinha 23 anos e "furava" o sistema que já então privilegiava antiguidades como postos e, no campo oposto, inventava vedetas meteóricas condenadas a durar apenas os três minutos de uma canção.

Os anos imediatos, se bem que lhe fossem vaticinados tropeços e quedas, foram de constante crescimento. Escreveu e publicou clássicos como "Pó de Arroz" (que, insisto, é uma das mais belas do património português) e "Discoteca" (que chegou a ser tema de uma aula de Português ... no Brasil), deu largas ao seu domínio perfeito da Língua em "Marcha do 'Pião das Nicas" e"Zero-A-Zero", demonstrou como a ingenuidade também faz falta à vida em "Os Namorados" ou "Canção dos Cinco Dedos". E deixou uma das criações que, de forma superior, retrata uma parcela de Portugal e do seu povo - a genial "Vinho do Porto" que, ainda hoje, ninguém percebe como não ganhou o Festival RTP de 1983. Esse tema bastaria, afinal, para lhe dar razão na defesa que fazia da música ligeira, desde que se mantivesse próxima de quem a consumia e, em simultâneo, não optasse pelas vias rápidas do facilitismo e da produção "a metro". Em entrevista, foi capaz de chegar à síntese perfeita para explicar o casamento entre a acessibilidade e a riqueza, nas melodias como nos textos. "O simples dá muito mais trabalho. Complicar e baralhar é muito mais fácil"... Ainda desta vez tinha razão não perdendo consciência dos "riscos" que esse lema implicava perante uma "intelligentsia"' carregada de dogmas e de vendas nos ouvidos.

Paralelamente. Carlos Paião já se afirmava como o único legítimo e brilhante descendente de uma tradição musical- a da sátira, a do humor. O grande cómico português das últimas décadas, Herman José, não hesitou em recrutá-lo para uma (então) reduzida equipa de criativos, pedindo-lhe letras e músicas para ajudar a dar vida e graça a alguns dos seus personagens de eleição. Paião escreveu quase todo o material que ajudou a dotar de dimensão nacional e a erguer como caso mediático O inesquecível Serafim Saudade, que chegou a gravar um disco em nome próprio, na sequência do programa "Hermanias", em 1984. Dois anos mais tarde, Paião tomou conta do não menos notável José Estebes, garantindo-lhe as canções que se ouviram ao longo da série "Humor de Perdição". De resto, aproveitando a colocação privilegiada do comentador nortenho no universo futebolístico, havia de ser Paião a escrever o "hino", não oficial mas popular, da selecção nacional de futebol que foi ao México para competir no Campeonato Mundial -"Bamos Lá Cambada", de melhor memória do que os jogos propriamente ditos.

Carlos Paião foi sempre um parceiro íntegro, um convicto esgrimista das suas ideias e um óptimo colega. Quando alcançou o estatuto de valor seguro, foi atirado para 0 papel de vítima de uma "febre" em que os agentes de contágio eram precisamente os cantores que queriam, a todo o custo, contar com "uma coisinha do Paião" para ajudar a disparar os respectivos trabalhos. Nunca se iludiu - sabia que a generosidade acabava par lhe ser prejudicial, mas lá foi distribuindo canções a meio mundo, de Nicolau Breyner a António Mourão, passando par muitos outros. Nunca abdicou do seu combate pela valorização da música ligeira e da musica portuguesa em geral: recordo, por exemplo, a tarefa ciclópica a que meteu ombros, sintonizando durante dias inteiros os canais de rádio existentes para poder demonstrar, com estatísticas documentadas, que a percentagem de produção nacional neles difundida se traduzia num evidente atropelo a uma lei de protecção que nunca foi cumprida e, agora, esta perdida numa qualquer "prateleira" carregada de pó e de esquecimento.

Tinha 30 anos quando, a caminho de um dos 100 espectáculos que cumpria anualmente, vetando sempre o "playback" que tantos louros garantiu a outros, uma estrada traiçoeira lhe cortou a obra e a vida. Nos termos actuais, dir-se-ia que dispunha de uma "margem de progressão" que acabaria por justificar a inclusão nos seus discos de um autocolante que chegou a estar pensado para o seu segundo álbum - referiria o aparecimento da "nova musica ligeira", por oposição aos que a tinham deixado envelhecer e decair. Não houve tempo: Carlos Paião morreu a 26 de Agosto de 1988, no dia seguinte ao incêndio que matou 0 velho Chiado lisboeta. Mas, se aquele retiro da alma lisboeta demorou tantos anos a ressuscitar, talvez fosse preciso também este intervalo para voltarmos a cruzar-nos com as melhores canções de um autor maior, matéria-prima mais do que suficiente para se dizer que sobrevive e continua a render um autêntico manual de boa música, não se perdendo o carácter "alternativo" que, já à época da sua publicação, representava no panorama português.

Este disco - "PERFIL" - que traz de volta Carlos Paião é, necessariamente, uma homenagem a um artista que nem mesmo a classe, que tão eficazmente representou e tão energicamente defendeu, soube preservar - se calhar, está-nos no sangue esta terrível herança do esquecimento... Mas julgo que, se ele ainda tivesse uma palavra a dizer sobre a forma de ouvir aquilo que nos deixou, juntaria ao sorriso meio tímido o conselho de uma audição atenta e sem preconceitos, capaz de reconhecer os méritos a quem nunca se interessou por personificar uma moda mas nunca desistiu de fazer as coisas a seu modo. Pego, de novo, no discurso directo: "Faz-me alguma confusão o desprezo com que se olha a musica ligeira - ela é um veículo importante para as pessoas da província que, para mim, começa a vinte quilómetros de Lisboa. (...) Acredito nos méritos desta musica, que só é maltratada em Portugal, onde ainda não se entendeu a necessidade de admitir um espaço próprio para ela, onde os 'snobs' tomaram conta de uma boa parte da crítica e podiam, ao menos, ouvir os discos que lhes são oferecidos antes de escreverem, então, bem ou mal."Esta conversa, a tal que não acaba, tem uns quinze anos. Mas, se pudéssemos continuar a dar voz activa ao Carlos Paião, não acredito que esta firmeza se tivesse esboroado. Muito pelo contrario: mesmo que o seu combate continuasse a parecer quixotesco, ele continuaria a manifestar-se contra os (falsos) gigantes dos moinhos que, é ponto assente, nos moem a paciência e o juízo.

Tenho saudades do Carlos. E, percebo melhor agora, também tinha saudades de o ouvir.

João Gobern
(texto incluído no livreto do disco "Perfil" de 2007)
Nota: o texto que o jornalista João Gobern escreveu aquando da morte de Carlos Paião, no jornal "A Capital", aparece publicado na reedição de 1991 da compilação "O Melhor de Carlos Paião".

1 comentário:

Judith Monteiro disse...

Já tinha tido a oportunidade de ler este texto a tempos, e foi bom relembrá-lo... é a tristeza de ver alguem a não ser reconhecido o seu verdadeiro valor...